Aconteceu o diálogo setorial (18/09/2025) onde foram apresentadas as propostas de revisão do regulamento técnico de rotulagem nutricional de alimentos embalados. Essas propostas ainda irão para consulta pública, mas já permitem enxergar mudanças profundas no cenário regulatório, com impactos diretos em indústrias de alimentos, bebidas e ingredientes.
Abaixo, destaco os principais pontos das propostas de mudanças apresentadas (aguenta coração 😊):
1) Escopo de aplicação:
A proposta do texto mantém a lógica da nossa RDC n° 727/2022, mas reforça exclusões e ajusta a redação, não se aplicando a alimentos embalados no ponto de venda na presença do consumidor ou aqueles preparados nos serviços de alimentação e comercializados no próprio estabelecimento.
RDC 429/2020: aplica-se a alimentos embalados na ausência do consumidor, incluindo bebidas, ingredientes, aditivos e coadjuvantes, mesmo destinados a processamento industrial ou food service. Não se aplica apenas às águas envasadas, conforme RDC n° 717/2022.
Nova proposta:
Art. 2º Esta Resolução se aplica aos alimentos embalados na ausência dos consumidores, incluindo as bebidas, os ingredientes, os aditivos alimentares e os coadjuvantes de tecnologia, inclusive aqueles destinados exclusivamente ao processamento industrial ou aos serviços de alimentação.
Parágrafo único. Esta Resolução não se aplica:
I – aos alimentos embalados preparados nos serviços de alimentação e comercializados no próprio estabelecimento;
II – aos alimentos embalados nos pontos de venda a pedido do consumidor; e
III – às águas envasadas, conforme Resolução de Diretoria Colegiada – RDC nº 717, de 1º de julho de 2022, ou outra que vier a lhe substituir.
Impacto médio: maior clareza, mas permanece a lacuna em relação a alimentos vendidos diretamente ao consumidor, que continuarão sem informações nutricionais obrigatórias.
2) Novas definições para açúcares adicionados e fibras
Açúcares adicionados:
A proposta traz grande impacto ao incluir sucos, sucos concentrados, sucos desidratados, polpas e purês de frutas e hortaliças como açúcares adicionados. Hoje, esses ingredientes não são contabilizados como açúcares adicionados, justamente para estimular o consumo de alimentos naturais. A mudança pode inverter essa lógica, pressionando a indústria a substituir sucos por edulcorantes para manter alegações (sem adição de açúcares) e evitar Rotulagem Nutricional Frontal.
Mas isso levanta a pergunta: estaremos empurrando o consumidor a ingerir mais adoçantes artificiais em detrimento de ingredientes naturais ou estamos apoiando as políticas internacionais de redução de doces em geral? E aí?
RDC 429/2020: exclui do conceito de “açúcares adicionados” os açúcares naturalmente presentes em frutas, sucos, polpas, purês e hortaliça.
Nova proposta:
I – açúcares adicionados: monossacarídeos e dissacarídeos adicionados durante o processamento do alimento, incluindo as frações de monossacarídeos e dissacarídeos, oriundos da adição de:
a) açúcar de cana-de-açúcar, açúcar de beterraba e açúcares de outras fontes;
b) melaço, melado, rapadura, caldo de cana e outros derivados da obtenção do açúcar;
c) mel;
d) sacarose, glicose (dextrose), frutose, maltose, lactose e outros mono e dissacarídeos;
e) maltodextrina, extratos de malte, açúcar invertido e xaropes, incluindo os obtidos por hidrólise de polissacarídeos;
f) sucos, sucos concentrados, sucos desidratados, polpas e purês de frutas e hortaliças; e
g) ingredientes adicionados de qualquer um dos anteriores.
Fibras alimentares:
Adota-se a definição internacionalmente consolidada de polímeros de carboidratos com três ou mais unidades monoméricas não hidrolisáveis, incluindo fibras sintéticas desde que apresentem comprovação de efeito fisiológico benéfico.
RDC 429/2020: XIV – fibras alimentares: polímeros de carboidrato com três ou mais unidades monoméricas que não são hidrolisados pelas enzimas endógenas do trato digestivo humano;
Nova proposta:
XIII – fibras alimentares: polímeros de carboidrato com três ou mais unidades monoméricas que não são hidrolisados pelas enzimas endógenas do trato digestivo humano e que:
a) estão naturalmente presentes nos alimentos na forma em que são consumidos, incluindo as frações de lignina e outros compostos associados a polissacarídeos na parede celular vegetal;
b) são obtidos a partir de matérias-primas alimentares por meio de processos físicos, enzimáticos ou químicos; e
c) são obtidos por meio de síntese;
Impacto Alto: pode incentivar a substituição por edulcorantes e reduzir o uso de ingredientes naturais.
3) Valores Diários de Referência (VDR)
A proposta retoma a frase extensa de rodapé da tabela nutricional:
“Porcentagem dos valores diários fornecidos por porção com base em uma dieta de 2000 kcal. Seus valores podem ser diferentes dependendo de suas necessidades energéticas.”
Essa redação era usada antes de 2020 e havia sido simplificada nas regras atuais. Agora, volta a ocupar espaço na tabela, dificultando a otimização gráfica. Além de outras mudanças relevantes:
- Exclusão dos VDR para gorduras trans.
- Inclusão de VDR para gorduras insaturadas, detalhando mono e poli-insaturadas.
RDC 429/2020: prevê VDR para energia, carboidratos, proteínas, gorduras totais, saturadas, trans, fibras e sódio. Gorduras insaturadas não possuem VDR.
Nova Proposta:
Art. 8°…
4º Para a declaração de que trata o inciso III do caput desse artigo, devem ser observados os seguintes requisitos:
I – para os nutrientes sem VDR definidos, o espaço para declaração do respectivo %VD na tabela de informação nutricional deve ser preenchido com um hífen;
II – quando a quantidade de valor energético ou de nutrientes for não significativa, conforme Anexo III desta Resolução, o %VD deve ser declarado como zero;
III – no caso de embalagens individuais, a declaração de que trata o inciso III, alínea ‘b’, do caput desse artigo deve ser realizada com base no conteúdo total de alimento na embalagem; e
IV – a declaração do %VD deve ser acompanhada da seguinte nota de rodapé na tabela de informação nutricional: “*Porcentagem dos valores diários fornecidos pela porção com base em uma dieta de 2000 kcal. Seus valores podem ser diferentes dependendo de suas necessidades energéticas.
Impacto médio: aumento do espaço ocupado e retorno de um modelo que já havia sido superado em 2020, representando um retrocesso em termos de design gráfico.
4) Tolerâncias
A proposta define margens de 80% (mínimo) para proteínas, fibras, vitaminas e minerais e 120% (máximo) para carboidratos, açúcares, gorduras, sódio e colesterol.
Embora o alinhamento seja positivo, a redação atual é confusa e pode abrir espaço para interpretações divergentes por vigilâncias locais, criando insegurança regulatória.
RDC 429/2020:Art. 33. Para fins de fiscalização, aplicam-se as seguintes tolerâncias:
I – as quantidades de valor energético, carboidratos, açúcares totais, açúcares adicionados, gorduras totais, gorduras saturadas, gorduras trans, sódio e colesterol do alimento não podem ser superiores a 20% do valor declarado no rótulo; e
II – as quantidades de proteínas, aminoácidos, fibras alimentares, gorduras monoinsaturadas, gorduras poli-insaturadas, vitaminas, minerais e substâncias bioativas do alimento não podem ser inferiores a 20% do valor declarado.
Nova proposta:
Art. 33. Para fins de fiscalização, aplicam-se as seguintes tolerâncias:
I – as quantidades de carboidratos, açúcares totais, açúcares adicionados, gorduras totais, gorduras saturadas, gorduras trans, sódio e colesterol do alimento não podem ser superiores a 120% do valor declarado no rótulo; e
II – as quantidades de proteínas, aminoácidos, fibras alimentares, gorduras monoinsaturadas, gorduras poli-insaturadas, vitaminas, minerais e substâncias bioativas do alimento não podem ser inferiores a 80% do valor declarado.
1º Quantidades inferiores ao valor de tolerância estabelecido no inciso I do caput desse artigo devem ser tecnologicamente justificadas e serão aceitáveis observando as Boas Práticas de Fabricação, desde que não representem risco para a saúde ou não induzam o consumidor ao engano.
2º Quantidades superiores ao valor de tolerância estabelecido no inciso II do caput desse artigo devem ser tecnologicamente justificadas e serão aceitáveis observando as Boas Práticas de Fabricação, desde que não representem risco para a saúde ou não induzam o consumidor ao engano.
3º As tolerâncias de que tratam o caput desse artigo não se aplicam aos limites de composição e de rotulagem estabelecidos em normas específicas.
Impacto alto: eleva a exigência de precisão, mas a redação ambígua pode gerar interpretações distintas entre as vigilâncias locais, trazendo insegurança regulatória.
5) Modelos de Tabela Nutricional
Aqui as mudanças são bem mais profundas:
- Reorganização do cabeçalho: “Porção” e “Porções por embalagem” mudam de ordem.
- Separação visual: linha mais espessa divide a coluna de 100 g/ml da coluna por porção.
- Mudança na célula da porção: em vez do valor, aparece apenas a palavra “Porção”.
- Inclusão de unidades de medida junto aos valores.
- % do VD aparece ao lado do valor numérico.
- Retorno do travessão (—) para nutrientes sem VDR definido.
- Novas abreviações para os nutrientes de gorduras e fibras.
Preparação de alimentos
Outra mudança importante é quando o alimento for preparado para consumo, a tabela deve apresentar preferencialmente a preparação de maior aporte energético.
Nova proposta:
§ 3º O modelo do item 6 do Anexo IX desta Resolução deve ser usada para os alimentos cuja declaração das quantidades na tabela de informação nutricional seja realizada por porção do alimento pronto para o consumo, preparado conforme as instruções do fabricante.
Declaração simplificada
Vitaminas e minerais na declaração simplificada passam a ser declarados apenas por porção e %VD.
Modelo bilíngue
A proposta introduz a possibilidade de uso de tabelas nutricionais em dois idiomas. No entanto, os modelos bilíngues previstos no Anexo IX são restritos ao par português–espanhol (ou inverso). Ou seja, não se trata de uma abertura geral para outros idiomas, mas de um ajuste específico voltado à harmonização no Mercosul.
Nova proposta:
§ 4º Os modelos bilíngue do item 8 do Anexo IX desta Resolução devem ser usados para os alimentos cuja declaração da tabela de informação nutricional sejam realizadas em português e espanhol.
Tabela linear
Agora deve ser usada apenas por 100 g/ml, ou, em embalagens individuais, pelo valor total da embalagem.
Nova proposta:
Art. 17. Caso os recursos de compactação de que trata o art. 16, caput, § 3º, desta Resolução não sejam suficientes para a declaração da tabela de informação nutricional em uma única superfície contínua, a informação nutricional deve ser declarada:
I – utilizando o modelo linear previsto no Anexo XIII desta Resolução; e
II – seguindo os requisitos específicos para formatação definidos no Anexo XIV desta Resolução.
§ 1º A declaração das quantidades na tabela de informação nutricional do modelo linear deve ser realizada:
I – por porção e %VD, no caso de alimentos em embalagens individuais; ou
II – por 100 g ou 100 ml, para os demais alimentos.
Impacto Alto: mudança estrutural e visual significativa, que exigirá redesenho completo das embalagens.
A revisão proposta é muito mais que um ajuste técnico, é uma reconstrução completa da rotulagem nutricional. Se por um lado há avanços em padronização e detalhamento, por outro surgem dúvidas:
- A inclusão de sucos como açúcares adicionados pode estimular a troca por edulcorantes?
- A volta da frase extensa no rodapé e as novas regras gráficas podem sobrecarregar embalagens pequenas?
- As tolerâncias de nutrientes declarados podem gerar conflitos regulatórios entre órgãos de fiscalização?
Agora, o próximo passo será a consulta pública, uma etapa fundamental para que a indústria, profissionais regulatórios e a sociedade possam se manifestar e garantir um regulamento claro, aplicável e alinhado à realidade brasileira e, quem sabe, do Mercosul.