A questão dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) é um tema sensível que permeia as discussões sobre segurança alimentar e direito à informação no Brasil. Desde o início da comercialização de produtos transgênicos no país, debates regulatórios e jurídicos buscaram balancear a transparência para o consumidor com a viabilidade econômica para a indústria.
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a rotulagem de OGMs reafirmou a validade do Decreto nº 4.680/2003, que permite a rotulagem apenas para produtos que contêm mais de 1% de OGMs.
Esta decisão sinaliza uma interpretação que considera a proporcionalidade e a necessidade econômica do setor, com implicações diretas para a forma como a informação sobre OGMs será apresentada ao consumidor.
Contexto Histórico: Ações Regulatórias e Demandas Legais sobre OGMs
No Brasil, a rotulagem de OGMs começou formalmente a ser regulamentada com o Decreto nº 3.871/2001, que estabelecia que produtos com mais de 4% de OGMs deveriam informar essa presença em seus rótulos. Esse limite, considerado elevado, foi posteriormente reduzido para 1% pelo Decreto nº 4.680/2003.
Decreto nº 4.680/2003,
Art. 2o Na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto.
O novo decreto visava ampliar a transparência para o consumidor, garantindo que alimentos com presença significativa de OGMs fossem rotulados, permitindo escolhas informadas. No entanto, a questão continuou a ser objeto de intenso debate judicial, especialmente sobre a necessidade de rotulagem mesmo para quantidades menores de OGMs.
Em 2016, o Ministro Edson Fachin, em decisão proferida no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, reforçou o entendimento de que o direito à informação, previsto no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), deveria garantir ao consumidor o máximo de transparência.
Essa decisão considerou que qualquer presença de OGMs deveria ser indicada nos rótulos, independentemente do percentual (baixe aqui a decisão), baseando-se no princípio da informação plena e na transparência, que o CDC resguarda como direitos fundamentais do consumidor.
A decisão de Fachin não teve efeito vinculante para a indústria, mas serviu como um precedente importante que destacou o peso do direito à informação no âmbito das relações de consumo.
O Ministro apontou que, embora houvesse o limite de 1% do Decreto nº 4.680/2003, o princípio de transparência do CDC poderia fundamentar a obrigatoriedade de informar a presença de OGMs em qualquer quantidade. Na prática, a decisão gerou um debate sobre a harmonização entre o CDC e o decreto, provocando questionamentos sobre até onde o limite de 1% seria compatível com o direito à informação do consumidor.
Essa interpretação foi um importante antecedente para a decisão do STJ em 2024 (baixe aqui), que revisitou a questão e reafirmou a legalidade do limite de 1% estabelecido pelo Decreto nº 4.680/2003.
No entanto, ao contrário do entendimento de 2016, o STJ fundamentou sua decisão nos princípios de razoabilidade e proporcionalidade, defendendo que quantidades inferiores a 1% não representam riscos significativos à saúde e que exigir rotulagem para traços mínimos de OGMs seria excessivamente oneroso para a indústria.
Com isso, o tribunal reafirmou que o decreto está em conformidade com a legislação, assegurando a viabilidade econômica e a proteção do consumidor de maneira equilibrada.
O Decreto nº 4.680/2003: Principais Pontos e Implicações
O Decreto nº 4.680/2003 estabelece que alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham mais de 1% de OGMs devem conter essa informação de forma visível no rótulo. Os principais aspectos do decreto incluem:
- Limite de 1% para Rotulagem Obrigatória: Abaixo desse limite, a rotulagem sobre a presença de OGMs é dispensada, com o entendimento de que traços mínimos não representam riscos significativos à saúde pública.
- Expressões Específicas para Rotulagem: Produtos que excedem o limite devem trazer expressões específicas, como “contém (nome do ingrediente) transgênico”, de forma destacada.
- Direito à Informação e Segurança Alimentar: O decreto visa balancear o direito à informação com a viabilidade para a indústria, fornecendo um padrão mínimo para que a rotulagem não se torne um custo excessivo e proibitivo.
A Decisão do STJ no Recurso Especial 1.788.075-DF (2024)
Em 2024, o STJ decidiu a favor da União e da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA), reconhecendo a legalidade e a compatibilidade do limite de 1% com o ordenamento jurídico brasileiro.
A decisão foi fundamentada em princípios de razoabilidade e proporcionalidade, considerando os avanços técnicos e o desenvolvimento sustentável. Os principais pontos abordados na decisão incluem:
- Ausência de Riscos Significativos à Saúde Pública: Passados mais de 20 anos da introdução dos OGMs no mercado, estudos apontam que eles não apresentam riscos comprovados para a saúde humana, especialmente em traços inferiores a 1%.
- Viabilidade Econômica e Sustentabilidade: O tribunal considerou que exigir testes rigorosos para identificar traços mínimos de OGMs tornaria os produtos mais caros, comprometendo a sustentabilidade econômica da indústria.
- Direito do Consumidor e Princípios da Ordem Econômica: A decisão buscou compatibilizar o direito do consumidor à informação com os princípios da ordem econômica previstos na Constituição (art. 170), promovendo um equilíbrio entre transparência e desenvolvimento econômico.
Análise da Decisão: Razoabilidade e Proporcionalidade na Rotulagem de OGMs
A decisão do STJ reflete uma abordagem prática ao exigir que a rotulagem de OGMs seja proporcional ao impacto real dos transgênicos na saúde pública. Essa interpretação judicial considera:
- Equilíbrio entre Direito à Informação e Custos Industriais: O tribunal reconheceu que exigir rotulagem para qualquer traço de OGMs implicaria em custos excessivos para a indústria. Esse entendimento evita que pequenos produtores e empresas de menor porte enfrentem dificuldades financeiras para atender à regulamentação.
- Disponibilidade de Alternativas para Consumidores: O STJ mencionou que consumidores com preferências específicas podem buscar produtos certificados como “livres de OGMs”. Assim, o mercado pode oferecer opções sem sobrecarregar toda a cadeia produtiva com a necessidade de testes de baixo percentual.
- Harmonização com Práticas Internacionais: O limite de 1% para a rotulagem de OGMs está em consonância com práticas internacionais, como a regulamentação europeia, que também considera esse limite razoável para evitar a rotulagem excessiva.
Caminhos e Expectativas Futuras
Com a recente decisão, espera-se que as normas regulatórias para OGMs no Brasil sigam uma linha que equilibre o direito à informação e a viabilidade econômica. Abaixo, listei algumas possíveis tendências e desdobramentos:
- Revisão e Consolidação das Normas de Rotulagem: Com a reafirmação do limite de 1%, o governo poderá consolidar a regulamentação de OGMs para fornecer mais clareza aos consumidores e às empresas sobre as práticas de rotulagem.
- Educação e Comunicação ao Consumidor: Para melhorar o entendimento sobre OGMs e reduzir preocupações, o governo e a indústria podem investir em campanhas que expliquem as implicações dos OGMs e o motivo pelo qual um limite foi estabelecido.
- Desenvolvimento de Tecnologias de Rastreabilidade: A tecnologia, como o uso de blockchain, pode auxiliar na rastreabilidade dos ingredientes, garantindo que as empresas possam facilmente identificar produtos que excedam o limite de 1% de OGMs.
- Mudança da Rotulagem: Como ainda cabe recurso, é aconselhável que a indústria aguarde um pouco mais antes de implementar mudanças na rotulagem.
A Rota para uma Rotulagem Transparente
A decisão do STJ sobre o limite de 1% para a rotulagem de OGMs reflete uma abordagem equilibrada que visa proteger tanto o consumidor quanto a viabilidade econômica do setor de alimentos. Embora o direito à informação continue a ser um pilar importante da legislação brasileira, o tribunal compreendeu que traços mínimos de OGMs não representam riscos significativos para a saúde pública e que a rotulagem excessiva seria prejudicial à indústria.
Essa decisão reafirma a importância com a segurança alimentar e a transparência, ao mesmo tempo em que reconhece os desafios econômicos enfrentados pelo setor produtivo.
E a Decisão é Final?
A decisão do STJ que reafirmou o limite de 1% para a rotulagem de OGMs ainda cabe recurso.
As partes interessadas podem interpor recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF) se argumentarem que a decisão viola dispositivos constitucionais. Com isso, o STF poderia, eventualmente, reavaliar a questão com base em princípios constitucionais. Portanto, enquanto o STJ consolidou o limite de 1%, o desfecho definitivo da controvérsia ainda depende da análise do STF, caso seja acionado.